quinta-feira, 6 de agosto de 2015

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: dez atitudes questionáveis do bibliotecário brasileiro registrado nos Conselhos de Biblioteconomia.

Francisco das Chagas de Souza

Continuo nesta coluna, a discussão iniciada na edição do mês de novembro de 2014. Nela falei de medos que corroem a autoestima do bibliotecário. Para muitos, creio que aquelas observações soaram como algo abstrato. Nesta edição trato de algo mais palpável: as atitudes e posturas provocadas pelos medos que os bibliotecários brasileiros registrados nos Conselhos de Biblioteconomia assumem, sem aparente crítica.

Medos determinam posturas e atitudes. As podem ser expressas como parte de um esforço de superação ou de conformação e, por isso, no caso da segunda postura, isto é, de conformação, dá-se a confirmação de um estado de quase inércia.

Há em parte dos bibliotecários brasileiros alguma atitude e consequente postura de superação limitada às questões técnicas. Mas mesmo isso, infelizmente,  não ocorre com a grande maioria. Os que fazem esse esforço creem e procuram demonstrar que muito sabem aplicar de mais técnicas e suas inovações. Mas, cada vez mais, isso termina por confirmar o estado de conformação ao quadro de exclusão política, que afasta as minorias sociais do maior e melhor acesso à informação e ao conhecimento, quando mediado pela atuação do bibliotecário registrado nos Conselhos de Biblioteconomia. Com isso, pelo seu autoengano, esses bibliotecários terminarão por fortalecer o movimento que procura compensar sua ausência ou substituí-lo em ações relacionadas à atuação em bibliotecas públicas e em bibliotecas escolares.

Sem a expectativa de deter a verdade da maioria, tenho as minhas impressões, que decorrem de minhas leituras contextuais, circunscritas à atuação como docente e pesquisador, nas áreas de Biblioteconomia, Educação e Ciência da Informação. Assim, construí este texto a partir de uma relação composta por dez itens listados abaixo. Ela não está dada segundo uma ordem de prioridade, mas decorre da lembrança que fui explorando, decorrente de minhas observações assistematicamente construídas.

Atitude 1 – Dirigir as bibliotecas, ou entidades com nomes similares, de forma amadora.

Os bibliotecários registrados nos Conselhos de Biblioteconomia são tidos como pessoas que durante 3,5 a 4 anos se submeteram a um processo de formação universitária, pelo qual deveriam ter assimilado dentre as técnicas ensinadas, as de gestão de bibliotecas. A justificativa para a oferta dos conteúdos pertinentes a esse domínio nos currículos de Biblioteconomia é de que esse conhecimento será fundamental para um trabalho que terá por base a organização dessas unidades de serviço. No mínimo, cada biblioteca, independentemente de seu porte, deveria ter como base um projeto  em que estivessem explicitas políticas e planos de ação. Para muitos, a política mais básica seria a Política de Formação e Desenvolvimento de Coleções, construída com a participação dos usuários e mantenedores ou dos representantes desses últimos, e aprovada em instância legitimadora da política e de suas estratégias de execução. Convencionalmente, o que se vê na atuação da grande maioria dos bibliotecários brasileiros registrados não confirma essa forma de agir. Do modo como a maioria dos bibliotecários atua, para a população e para os usuários, que diferença faz entre sua presença ou a de qualquer outra pessoa como dirigente de biblioteca?

Atitude 2 –  Aplicar multa pecuniária na biblioteca.

Um especialista que lida com pessoas está supostamente preparado para adotar estratégias que progressivamente possam levar a maioria dessas pessoas a se autopoliciar na contenção de suas pulsões antissociais. No caso de uma biblioteca coletiva, pública estatal, por exemplo, pode-se perceber que há o imperativo de que todos os membros da comunidade que a utilizam ou possam utilizá-la a enxerguem como pertencimento comum. Entretanto, ao ser pertencimento comum, pode ser necessária a adoção de um regulamento ou de regras mais pontuais para a circulação do material, por exemplo. Quem decidirá qual é o conteúdo desse regulamento ou quais são as regras? Em geral, os bibliotecários, especialmente os formados nos cursos universitários do Brasil, têm como dogma que a multa pecuniária na biblioteca é a única ou a melhor forma. Alguns argumentam que ela serve como instrumento  educativo, ou que é uma forma de correção moral, ou que é um instrumento que evita a repetição e que pune uma “ação criminosa”, pois teimam em ver o atraso na devolução da obra com essa característica. Há exagero nesse dogma, embora o atraso na devolução de materiais, por exemplo, possa ser em si e a depender das circunstâncias reprovável, nem sempre sua condenação de forma cega produz equilíbrio entre o retorno da obra à coleção e seu imediato empréstimo. Não são poucos os casos em que atingido o prazo de devolução não há a reivindicação da obra por um terceiro leitor. Em casos em que não há um beneficiário direto do retorno da obra à coleção, esta atitude tirânica de aplicar a extorsão financeira sobre o usuário em atraso não pode ser tida somente como um mero dogma profissional. Não é um dogma profissional, mas uma insensível forma de manifestação de poder, atitude que, provavelmente, para o bem da profissão não deveria ser afirmada como regra predominante pelo bibliotecário. Sendo, portanto, uma tirania contra “os proprietários” da coleção poderia ser afirmada como uma operação de cunho meramente técnico? Ou, por fim, representaria o completo desconhecimento de parte do bibliotecário da comunidade usuária a que atende, e que por isso crê que o melhor relacionamento seria tratá-la como manada, sob o seu chicote? No fundo da questão, o controle do fluxo de uso da coleção tem relação direta com a negociação que deverá envolver os “proprietários” da coleção, que são inclusive os garantidores do emprego do bibliotecário, e este bibliotecário. Os “proprietários” da coleção teriam momentos para coletivamente instituir a melhor maneira de aumentar o benefício que o uso da coleção poderia proporcionar à comunidade. Um primeiro momento se daria quando da implantação da biblioteca, já em sua primeira etapa do projeto institucional. Dentre todas as decisões a tomar, uma das primeiras é sobre a coleção, conteúdo e uso. Depois viriam outras, dentro de uma proposta de avaliação continua. Essa outra forma de ação, de trabalho realmente conjunto com a comunidade, e vale para todos os tipos de biblioteca, certamente, tiraria o chicote da mão do bibliotecário, que poderia assumir uma atitude de conciliador. Felizmente, já há algumas aceitáveis experiências em bibliotecas universitárias de substituir essa violência da multa pecuniária por outras formas de contenção de pulsões antissociais no uso das coleções que promovem o empréstimo domiciliar.

Atitude 3 – Sustentar a ideia da unicidade da bibliotecária.
           
Há no Brasil, desde quando algum(a) santo(a) bibliotecário(a) intuiu, defendeu e fez valer a ideia de que os vários tipos de bibliotecas, isto é, de comunidades usuárias de coleções de conhecimentos, precisam de um mesmo profissional, formado com o mesmo currículo mínimo e centrado em técnicas de descrição de forma e conteúdo de materiais impressos ou similares. Cada vez mais fica evidente que o bacharelado em Biblioteconomia no Brasil, ainda sustentado por uma ideologia da neutralidade ou do distanciamento social, dado pelo domínio técnico ordenador de coleções, caducou. A experiência social brasileira hoje corresponde, ao ter retomado nos últimos anos certa força da base social, àquela que havia na Europa e Estados Unidos da América da terceira ou quarta décadas do século XX. Essa experiência apontava para a impossibilidade de alguém ser e sustentar-se como bibliotecário apenas com o domínio de técnicas de gestão de coleções. Ser bibliotecário é ser gestor de demandas de pessoas que buscam o conhecimento. Assim, para ser um bibliotecário, de fato, é necessário que a pessoa que escolhe essa profissão tenha em sua formação um bom acervo de conhecimento e, portanto, de formação em história, sociologia e psicologia, como base. Essa foi a ideia exposta por Pierce Butler na década de 1930 nos Estados Unidos da América e lá aceita. O Brasil hoje está em estágio similar. Para ser bibliotecário, e saber ser bibliotecário, precisamos urgentemente de milhares de mestres em Biblioteconomia ou de milhares de bacharéis em Biblioteconomia com mestrado em diversos campos. 

Atitude 4 – Enxergar o usuário, ou leitor, ou consulente como inimigo de seu trabalho ou da biblioteca.

Parece cada vez mais comum, em parte por conta das atitudes predominantes entre os bibliotecários, entre os quais há um grande número de mentes estreitas do ponto de vista social e moral, que tenhamos bibliotecários que se sentem mais confortáveis quando atuam majoritariamente nas funções de catalogadores, classificadores, indexadores e preenchedores de planilhas. Na condição de verem a biblioteca como a coleção de materiais, quaisquer demandas que os retirem das tarefas mencionadas são consideradas como tempo morto, sobretudo aquelas em que o usuário, ou leitor, ou consulente precisa de um ouvido e de atenção para falar de algo. Essa parte da missão profissional quando requerida dificulta a comprovação de trabalho feito. Por produzir baixa estatística de preparo, circulação ou uso da coleção cairá na categoria de trabalho morto, por isso não interessa. Como preferência, grande parte dos bibliotecários roga aos seus deuses, que não venham os usuários como leitores ou consulentes, isto é, como pessoas. Melhor ainda que eles se satisfaçam com trabalho a distância, isto é, sejam apenas usuários.

Atitude 5 –  Considerar a biblioteca como sendo um “lugar” e esse “lugar” tendo a coleção como foco central.

Ainda parece ser ideia predominante entre os bibliotecários aquela que associa biblioteca com o edifício sede onde está instalada uma equipe profissional, que trabalha sob um projeto de promoção do relacionamento entre a memória histórica, artística, filosófica, científica e social da humanidade e a geração atual de indivíduos que busca esses conhecimentos com a finalidade de existir e ser. Ora, a biblioteca é a expressão desse relacionamento; sendo assim a biblioteca não se reduz ao prédio onde estão sediadas equipes profissionais e os materiais. Em sendo relacionamento interpessoal a biblioteca é movimento. Grande número de papagaios de Ranganathan não percebeu ainda que as famosas cinco ideias nucleares da prática bibliotecária (por que chamá-las de leis?) desfoca a ideia de prédio. O que impede o bibliotecário brasileiro de rever essa ideia? É o sentido de “sem teto” e “sem chão”, que faz parte do nosso pensamento miserável?

Atitude 6 –  Considerar o usuário como ignorante em relação à biblioteca ao vê-lo valorizá-la mais como um organismo vivo e em movimento.

Em função de que o mundo vivido é um monstro de contradições, em função de que cada um de nós é fonte e usuário dessas contradições, sabemos que para a grande maioria dos usuários a biblioteca é mais movimento que “lugar”. Para eles importa mais o acesso à informação sob quaisquer formatos que o prédio da biblioteca; porém, ao mesmo tempo, parte deles quando toma a iniciativa de criar suas bibliotecas comunitárias tende a pensar no prédio, mas com um relevante detalhe: esse prédio é a sede dinamizadora da comunidade; é parte do movimento. Essa sede não é, necessariamente, um armazém de materiais. Vê-se nitidamente o contraste de ideias, quando, por acaso, voluntariamente, um bibliotecário formado em Biblioteconomia, se oferece para colaborar neste tipo de empreendimento. Ao tentar reduzir a ideia de biblioteca a uma coleção organizada ou desmonta a dinâmica social do trabalho em realização ou muda a si mesmo. Se optar pela segunda vertente, sufocando a sua ideologia redutora do que é uma biblioteca, ele começa a superar essa atitude, isto é, de se considerar o dono da iluminação bibliotecária. Quantos suportarão isso?

Atitude 7 – Propagar a eterna defasagem do currículo acadêmico adotado pelo sistema universitário para a formação de bibliotecário.

Essa atitude é um defeito social largamente praticado por grande parte dos bibliotecários brasileiros. Tem duas fontes: primeira, vem de sua formação como mero bacharel técnico, desprezando que o Brasil das últimas décadas exige outro tipo de formação bibliotecária, que não é uma simples modificação ou atualização curricular. Exige algo parecido com o que expus como comentário da atitude 3 acima, ou seja, precisa de mestres em Biblioteconomia, vindos de quaisquer áreas de bacharelado ou licenciatura e de mestres em quaisquer áreas que tenham bacharelado em Biblioteconomia; segunda, vem da ausência da competência política para o engajamento em movimento associativo, a partir do qual, possa realizar a avaliação continua da formação de bibliotecários e, com isso, permanentemente assessorar a formação bibliotecária com a proposição clara e oferta de conteúdos e com a disposição consciente de complementar a formação universitária com a oferta honesta de estágios de aprendizagem para os formandos.

Atitude 8 – Defender exaustivamente a ideia de que sem bibliotecário registrado nos Conselhos Profissionais a biblioteca não é biblioteca.

Essa atitude é também um defeito na inserção social do bibliotecário. Está correlacionada ou confirma o modelo de submissão representado pela existência do Conselho Profissional, imperiosamente instituído através de uma Lei que, para Edson Neri da Fonseca (citado à página 176 do Livro de César Castro, História da Biblioteconomia no Brasil, Ed. Thesaurus, 2000), “não protegia o bem comum e sim a classe bibliotecária, instituindo mais um corporativismo dentro do serviço público”.

Atitude 9 – Pleitear o discurso da ética enquanto desprestigia as suas Associações Bibliotecárias.

Esta atitude é tão visível, que não requer comentário longo. Para compreendê-la é bastante o bibliotecário brasileiro olhar para o lado e ver o que faz das e com as Associações profissionais de bibliotecários. Elas são, historicamente, por sua constituição como ente voluntário e sustentado pelo coletivo dos profissionais, os meios para a legitimação profissional. Em sendo assim, dependem ‒ para existir, atuar e de fato defender a excelência do conhecimento profissional ‒ da sustentação financeira, do envolvimento de bibliotecários com a gestão corrente, com a captação de fontes de financiamento para seus cursos e suas publicações, da publicização e da concertação política com as fontes de poder econômico e político presentes na sociedade. Esse perfil que em âmbito internacional não é somente idealização ainda é no Brasil uma quase abstração. Em sendo assim, nesse aspecto, falta uma boa prática ao bibliotecário brasileiro; isto é, a prática da ética, com foco na beneficência.

Atitude 10 – Estar indisposto para fazer e receber crítica às suas práticas profissionais.

Esta atitude, em geral, se manifesta na reação de grande parte dos bibliotecários de negar valor aos comentários e observações dos poucos que se aventuram a fazer essa crítica. Mas esses, por sua crítica, em geral, estão tentando contribuir para que surja um sentimento de incomodação na maioria, de forma a potencialmente levá-los ao esforço de superação de suas deploráveis atitudes. Há um vício generalizado entre os bibliotecários em torno do entendimento de que existe boa crítica e má crítica. Por isso, há a leitura predominante de que a boa crítica é sinônimo de elogio e a má crítica ao não ser elogio, mas a síntese de uma análise consciente, ser sinônimo de ofensa. Essa indisposição em receber a crítica cria e reforça a indisposição para fazê-la, na medida em que fazer a crítica torna o seu autor não alguém a ser visto como um colaborador do progresso profissional, mas um inimigo pessoal. Como superar esse círculo vicioso?

Concluindo, este texto corresponde ao 72º que apresento nesta Coluna: Prática Profissional e Ética. Nestes sete anos de exposição de ideias, motivado pelo duplo interesse em refletir sobre prática e sobre a ética profissionais pude contar com a aceitação do Professor Oswaldo Almeida Junior em abrir este espaço para que essas ideias fossem divulgadas. Também pude contar com leitores que, silenciosos ou travando interlocução, questionando alguns pontos de vista expostos ou até elogiando a exposição de algumas dessas ideias, mantiveram-me convicto de que valia o esforço em levantá-las. Evidentemente, não houve qualquer outro propósito senão o de exercer uma das relevantes posturas profissionais e éticas do bibliotecário que é o de avaliar permanentemente a sua ação como membro de uma categoria profissional. Fiz isso com a certeza de que era parte do meu trabalho acadêmico. Tendo em vista que estou com processo de aposentadoria em tramitação na UFSC, esperando entrar em inatividade profissional a partir do final de fevereiro de 2015, quero aqui me despedir desta coluna.

A coluna Prática Profissional e Ética, entretanto, continuará em atividade, com o concurso da Professora Ana Cláudia Perpétuo de Oliveira da Silva. Ela, com certeza, elegerá focos a partir dos quais difundirá suas ideias sobre a temática a envolver profissão e ética. A ela desejo o melhor sucesso.

A todos que, direta ou indiretamente, tiveram conhecimento da Coluna e que, por meio dela, comigo interagiram os meus agradecimentos.

Ao Professor Oswaldo Almeida Júnior os meus melhores votos de continuo sucesso.

Felicíssimo Natal a todos e um 2015 só de coisas boas!

 Sobre Francisco das Chagas de Souza
Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB
Francisco das Chagas de Souza


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