quinta-feira, 16 de julho de 2015

Material bibliográfico como bem permanente ou bem de consumo?

Quem trabalha no serviço público sabe quão burocrático é o desenvolvimento de acervo nas bibliotecas e centros de informação dos órgãos públicos. A burocracia é necessária para garantir a lisura e a transparência na aquisição de material bibliográfico. A aquisição exige tomada de preços, orçamentos de pelo menos três fornecedores diferentes e licitação. Além disso, o fornecedor vencedor da licitação deve estar quites com a Receita Federal (Certidão Negativa de Débitos Relativos a Tributos Federais e à Dívida Ativa da União); com a Previdência (Certidão Negativa de Débitos Relativos à Previdência (INSS)); e estar regular perante o FGTS (Certidão de Regularidade do FGTS). Muitas vezes isso impede a compra direta junto ao produtor (no nosso caso, as editoras), permitida quando o material tem apenas um “produtor”). O descarte, outra ponta do processo de desenvolvimento de acervo, também é complicado. Porque os materiais bibliográficos, exceto nas bibliotecas públicas, são classificados como bens permanentes. Esta classificação está lá no Manual SIAFI da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda.

A Lei 10.753/2003, que institui a Política Nacional do Livro, em seu art. 18 estabelece que “com a finalidade de controlar os bens patrimoniais das bibliotecas públicas, o livro não é considerado material permanente”. Mas o objetivo da lei não é tratar da aquisição de material bibliográfico e sim de facilitar e incentivar o acesso à leitura estabelecendo diretrizes para a editoração, distribuição, comercialização e difusão do livro. A lei também não define o que é biblioteca pública.

A Secretária do Tesouro Nacional (STN), no Manual SIAFI, define biblioteca pública como “uma instituição fundamental para o desenvolvimento educacional, cultural e social dos povos modernos. São centros de informação da comunidade instalados em lugar público, aberta a todos, em horário adequado para a comunidade, podendo-se ler livremente de tudo o que lhe possa interessar em materiais bibliográficos”. Esta é a definição corrente na literatura de biblioteconomia.

Mas quais são as bibliotecas públicas a que se refere o art. 18 da Lei 10.753/2003? São as bibliotecas públicas no sentido amplo do conceito, ou seja, aquelas que atendem a todo o conjunto da sociedade, que possuem acervo universal versando sobre todos os temas. Ou são as bibliotecas mantidas pelo poder público?

A STN define biblioteca pública de acordo com a tipologia das bibliotecas. Nesta tipificação de bibliotecas temos as nacionais (responsáveis pelo controle bibliográfico e pelo depósito da produção bibliográfica de um país); as públicas (centros de divulgação e acesso à leitura, aos bens culturais,  ao lazer); as universitárias (para suporte à pesquisa e ao ensino em universidades); as especializadas (com acervo específico para atendimento das demandas operacionais de uma instituição ou empresa); as especiais (com acervo em formato, linguagem ou características específicas) e as escolares (para suporte ao ensino nas escolas fundamentais, médias e técnicas).

Outra forma de interpretar o termo “biblioteca pública” na lei é considerando que biblioteca pública é aquela mantida por uma órgão público e com recursos oriundos da administração pública. Assim teríamos a divisão das biblioteca em três grupos: as públicas, mantidas com recursos públicos; as privadas, mantidas por instituições e empresas privadas; e as particulares, organizadas e utilizadas por um grupo restrito de pessoas. Nota-se que tantos as bibliotecas públicas, quanto as bibliotecas privadas são abertas a um público mais amplo. Assim não sabemos se a lei se refere à biblioteca pública, no sentido técnico do termo, ou se refere à ela como uma instituição mantida com dinheiro público.

O certo é que enquanto o Tribunal de Contas da União (TCU) e a STN determinam a classificação dos livros como material permanente, muitos órgãos declararam suas bibliotecas públicas e classificam seu material bibliográfico como bem de consumo, de uso duradouro (cito como exemplo o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região). Todos estes órgãos se basearam no art. 18 da Lei 10.753/2003. E fizeram a interpretação do conceito de biblioteca pública, considerando que suas bibliotecas são públicas porque são mantidas com recursos públicos e porque são abertas e acessíveis ao público em geral. Se tomarmos as definições técnicas de biblioteca, as bibliotecas destes tribunais devem ser consideradas especializadas; esta definição é utilizada pelos orgãos que não adotaram a classificação dos materiais bibliográficos como bens de consumo, e também pelo TCU e STN.

E qual a diferença entre classificar o material bibliográfico como bem permanente ou bem de consumo? Basicamente é a celeridade no processo de desenvolvimento do acervo. A aquisição, a guarda e o descarte tornam-se mais racionais e céleres ao classificarmos o material como bem de consumo. As obras bibliográficas possuem características que as diferem de outros materiais. O Manual do SIAFI define material de consumo como “aquele que, em razão de seu uso corrente, perde normalmente sua identidade física, tem sua utilização limitada a dois anos e/ou tem a vida útil reduzida de forma acelerada por desatualizações”; e material permanente como “aquele de duração superior a 2 (dois)”. Estes materiais são identificados de acordo com um conjunto de parâmetros excludentes:durabilidade, fragilidade, perecibilidade, incorporabilidade e transformabilidade.

Os materiais bibliográficos são avaliados, em bibliotecas, para fins de desenvolvimento do acervo, de acordo com suas características físicas e também de conteúdo. Na forma o material é avaliado quanto ao suporte, demanda, quantidade, custo, estado de conservação e uso. No conteúdo o material é avaliado quanto à qualidade, pertinência, adequação, atualidade/obsolescência e importância. Há outros critérios utilizados desde a seleção, passando pela aquisição, avaliação, desbaste e descarte, que não listaremos aqui.

A classificação do material bibliográfico como bem permanente leva em conta apenas a forma. Pois se avaliarmos o conteúdo veremos que este material pode perder sua durabilidade antes de dois anos (como exemplo citamos os códigos da área de Direito que são atualizados anualmente). Podemos ter materiais bibliográficos que perdem sua utilidade antes de dois anos (bem de consumo) e outros que vão durar mais (bem permanente). O material bibliográfico é também susceptível ao desgaste pelo uso constante, por causa da fragilidade dos suportes informacionais. Geralmente, o material que circula intensamente sofre danos em sua estrutura física antes de dois anos de uso.

A classificação do material como bem permanente tem o objetivo de assegurar sua preservação e instaurar procedimentos mais rígidos para seu controle e descarte. Contudo, mesmo que o material bibliográfico seja classificado como bem de consumo, não significa que sua gestão seja descontrolada. A aquisição, o tratamento, a disponibilização e o descarte do material são processos fundamentados em critérios rigorosos. Certamente que essa classificação facilita o desenvolvimento de acervo, pois permite que esse processo seja feito com base em critérios técnicos. E garante que a coleção possua materiais adequados para atender aos seus usuários, em espaço físico racional e funcional.

Finalizamos dizendo que essa discussão sobre a classificação dos materiais bibliográficos como bens de consumo ou bens permanentes acontece em diversos órgãos públicos e representa um “embate” entre os setores de Biblioteca e os setores de Controle Interno e Contabilidade. Ainda que o TCU e a STN tenham posições claras quanto à definição de biblioteca pública, insistimos que a Lei 10753/2003 não a define, gerando ambigüidade e possibilidade de interpretações diferenciadas. Mas seja qual for a classificação adotada, o importante é que o desenvolvimento do acervo seja feito com base em critérios técnicos rigorosos.

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