quinta-feira, 25 de junho de 2015

POR UMA BIBLIOTECONOMIA SOCIALISTA

As bibliotecas, historicamente, tiveram o papel de preservadoras do conhecimento produzido pelo homem. Mas, duas características nesse papel devem ser destacadas: 1) a preservação deu-se a partir de documentos tangíveis, palpáveis, concretos, materiais. A oralidade, por exemplo, foi desconsiderada, uma vez que não era passível de ser registrada, armazenada e recuperada quantas vezes necessária. A solução encontrada foi a de se registrar em documentos o conteúdo veiculado oralmente; 2) o conhecimento preservado era – e continua sendo – oriundo das classes dominantes, seja nos aspectos políticos, econômicos, culturais etc.

Os derrotados, os vencidos, seja nas lutas em corpo, nas guerras, seja nos embates de ideias, concepções, interesses e poder, não deixaram marcas, rastros, legados e heranças formalmente preservados. Uma das formas de se manter um poder é não permitir que a cultura dos outros esteja presente, visível. Assim, todo o conhecimento preservado pelas bibliotecas representa, veicula e reproduz interesses e necessidades dos que se apoderaram dos mecanismos e instâncias da sociedade. Isso permite a essa classe a imposição de concepções que atendem unicamente a formas de sua manutenção no poder.

As bibliotecas públicas, abertas a todos e financiadas integralmente pelo Estado, continuam atuando dentro dessa perspectiva, ou seja, preservando o conhecimento das classes dominantes. É notória a sua relação com os excludentes. Para sobreviver, essas bibliotecas firmaram um pacto tácito com os excludentes. Passam, no entanto, a ilusão de que atendem e estão voltadas para todos. Os Manifestos defendem, no âmbito do discurso, uma biblioteca pública democrática, aberta e servindo a todos. A realidade é completamente diferente. As ações desenvolvidas pelas bibliotecas públicas estão voltadas para a veiculação e disseminação de um olhar do mundo que interessa aos excludentes.

As propostas ditas inovadoras apenas envolvem as bibliotecas com uma capa mais bonita, embora mantenham intacta a base teórica de sustentação dessas bibliotecas. Uma tinta embeleza as paredes, mas a essência continua a mesma. As ações integram novos suportes, mas permanecem preservando e veiculando o conhecimento das elites.

As bibliotecas públicas, dentro da visão tradicional, não estão preocupadas com o conteúdo dos materiais, mas apenas com a oferta de acesso físico a eles. Nessa perspectiva, ler é bom independente do conteúdo, independente do que está sendo veiculado.

Essa postura vincula-se mais ao consumo do que à produção de informações; vincula-se mais à reprodução do que à transformação. Vale o quanto se lê e não a qualidade do que se lê. Bom leitor é aquele que lê muitos livros por ano.

Informação e leitura não são sinônimas.

A biblioteca pública privilegia o indivíduo e não o coletivo. Passa-se a ideia de que a cultura e o conhecimento são adquiridos de forma isolada, individualizada. Defendo que o conhecimento é construído individualmente, mas sempre na relação do sujeito com o mundo, com a natureza e com os outros. Na biblioteca os usuários são obrigados a permanecer em silêncio, exigido constante e insistentemente. Por que isso? Individualiza-se, com essa atitude – e mais, com o entendimento da qual ela tem origem – a relação com o conhecimento. A biblioteca desloca-se, afasta-se quando exige silêncio em um mundo barulhento; exige leitura, quando a tônica do mundo atual é a conversa, em todo o tempo e lugar, via celular.

Trabalhando com o consumo, privilegiando o individualismo, a biblioteca pública (e vários outros tipos de bibliotecas) se perfila com as bases de sustentação do capitalismo. A biblioteca é, em essência, hoje, produto do capitalismo.

Nas revoluções populares que ocorreram em determinados lugares do mundo, logo após elas, a saúde se modifica, adequando-se às novas bases de sustentação das políticas públicas; por seu lado, o mesmo ocorre com a educação; em igual medida, com a moradia, o entretenimento, o saneamento básico etc. Todos esses segmentos sofrem profundas mudanças claramente visíveis. Mas, em relação às bibliotecas, as revoluções populares em nada alteram o fazer delas. Antes da revolução as bibliotecas eram de uma forma, atuavam de uma forma; depois da revolução elas permanecem atuando da mesma maneira.

As bases conceituais, presentes na Biblioteconomia, determinam a concepção de que a biblioteca existe isolada da sociedade; seus acervos não atendem a interesses específicos, localizados, mas procuram apenas preservar um conhecimento que parece transcendente, muito acima das causas mundanas que determinaram as revoluções, as transformações.

A Biblioteconomia também é, em essência, hoje, fruto do capitalismo.

As bibliotecas consideram-se neutras, como o são (acreditam os bibliotecários) o conhecimento, a informação. Sendo neutras, as mudanças sociais não as afetam; sendo o conhecimento neutro, as informações neutras, não precisam ele e elas serem analisados, estudados, questionados. Os conflitos existem apenas pelo bom ou mau uso, que faz o homem, do conhecimento e das informações. Este e estas são bons em si mesmos.

Quantos textos conhecemos que falam e estudam uma “documentação popular”? Eu, particularmente, conheço apenas um, produzido nos anos de 1980. E pior: fruto de reflexões não oriundas da Biblioteconomia.

Precisamos repensar as bibliotecas e a Biblioteconomia. E precisamos repensá-las agora.

Por que não repensarmos as bibliotecas e a Biblioteconomia a partir de um ponto de vista socialista, uma Biblioteconomia Socialista?

(Estou montando um grupo de pesquisa para estudar essa possibilidade. Vou continuar postando alguns textos sobre isso aqui em minha coluna).

 Sobre Oswaldo Francisco de Almeida Júnior

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