quinta-feira, 18 de abril de 2013

RDA: O MODELO DE NEGÓCIO QUE INFLACIONA A CATALOGAÇÃO BRASILEIRA

RDA: O MODELO DE NEGÓCIO QUE INFLACIONA A CATALOGAÇÃO BRASILEIRA

Fernando Modesto


Desde o dia 1 de abril de 2013 (e não é mentira), a Biblioteca do Congresso (LC) dos EUA e a Biblioteca Britânica estão usando a RDA como seu padrão descritivo oficial de catalogação bibliográfica. Sobre os procedimentos que nortearam a adoção da norma pela Biblioteca do Congresso, os mesmos podem ser acessados no endereço:http://www.loc.gov/aba/rda/pdf/RDA_Long-Range_Training_Plan.pdf.

A decisão da LC e Biblioteca Britânica simbolizam a oficialização da nova norma, e de toda uma estrutura comercial mais ampla para popularizar o seu uso. Certamente, muito mais livros, artigos, cursos, seminários, grupos de discussão serão produzidos. Algum material será disponibilizado gratuitamente, e tudo mais comercializado. Neste sentido, na última edição desta coluna, discutiu-se o modelo de negócio estabelecido para acesso e uso da RDA.

Embora muitas bibliotecas brasileiras tenham condições financeiras de efetuar uma assinatura anual para o acesso à nova norma, creio que outras tantas bibliotecas dificilmente terão tais condições, ou enfrentarão grandes dificuldades, seja pela ausência de apoio institucional, ou mesmo pela impossibilidade de realizar a assinatura pessoal.

Apesar da comunidade bibliotecária brasileira não ter debatido (a meu ver), com a devida profundidade a necessidade de adotar imediatamente a RDA, o procedimento para sua adoção, ou os custos envolvidos. O cenário catalográfico atual embute um detalhe gerado pela nova economia digital – propriedade (compra de um produto), ou acesso (aquisição de uma licença renovável). Para exercer a prática catalográfica, sob novas diretrizes, pode-se tentar comprar uma versão impressa, mas enfrentando todos os custos de atualização, à semelhança da AACR2r. Eis, então, o dilema de momento dos catalogadores brasileiros (comprar o código em inglês ou fazer uma assinatura anual de acesso ao conteúdo e tudo mais em inglês).

Como frisado, tem-se um ambiente econômico digital. Recorde-se de modelos como: Apple Store e o iTunesGoogleplayAmazon, e as Editoras de Revistas Científicas. A RDA é, agora, um recurso comercializado como serviço em nuvem. Se a banda larga da biblioteca não for estável, os dias do catalogador serão de tempestades. Enquanto pagar tem (acesso), parou –logout definitivo.

Tanto no mundo da economia tradicional, quanto da digital, não existe almoço grátis. No universo das bibliotecas, o código de catalogação não é mais a compra de uma publicação única, mas de um acesso renovável por assinatura, sem anotações ou comentários a lápis nos pés de páginas. Porém, é bom salientar que a RDA não é unanimidade, nem nos Estados Unidos. Não que isto venha a afetar sua ampla adoção.

Apesar das comunicações oficiais positivas da ALA (American Library Association) e da Biblioteca do Congresso, a comunidade bibliotecária norte-americana tem expressado dúvidas sobre muitos aspectos da RDA. A começar pela declaração da RDA ser focada nos usuários. As quatro tarefas básicas do usuário, preconizadas nos princípios da FRBR, na qual a RDA em parte se baseia, não indica o envolvimento de algum estudo de usuário para a definição dessas tarefas. Nenhum estudo em particular é conhecido.

Outra preocupação se refere ao alto custo de adoção da RDA. O RDA Toolkit é oferecido por meio de uma assinatura anual de $380 dólares, com um preço básico para dois ou mais usuários. Uma assinatura anual única por usuário é oferecida no valor de $195 dólares, enquanto a edição impressa está disponível por $150 dólares (deixo ao leitor a conversão para o real).

A maioria dos catalogadores norte-americanos, atualmente, acessam a AACR2r pela versão impressa que custa $95 dólares, ou pelo recurso online  denominado Cataloger’s Desktop, que inclui dezenas de normas e ferramentas de catalogação, e cuja assinatura anual para multiusuários começa entre $525 e $685 dólares. Este recurso multiusuário que parece caro segundo padrões financeiros do Brasil, é mais vantajoso que o proposto pelo modelo de negócio da RDA. O RDA Toolkit não inclui assinatura no modelo do Cataloger’s Desktop, mas sim inscrições separadas.

Outro custo está relacionado com a atualização profissional. Nos Estados Unidos, a maioria dos catalogadores é de nível técnico, e para utilizar a RDA requerem uma capacitação específica. Portanto, pessoal capacitado para viajar a locais distantes e ministrar treinamento é caro e, mesmo o treinamento on-line ainda é caro.

Outra preocupação é que a RDA foi projetada para operar em um ambiente de informação que ainda não existe. A falada Web Semântica ainda está em desenvolvimento, e há questionamentos se ela vai realizar tudo o que é esperado. Em relação a isto, e à informatização de bibliotecas, é fato que nenhum software bibliográfico existe comercialmente para explorar todas as capacidades da RDA. Há apenas protótipos.

Bibliotecários brasileiros, o que fazer? Pagamos ao “Tio Sam” ou voltamos para as fichas lascadas, em nosso velho e saudoso MicroIsis? Na lista de catalogação “Grupo de Estudos em Catalogação” (GCAT) foi postado indicação sobre como burlar o acesso ao serviço do RDA Toolkit.

Basta acessar o site http://access.rdatoolkit.org/, e preencher no login de usuário: rda, e na senha (password): rda. Apesar de o sistema franquear por trinta dias a experimentação do serviço.

Ressalte-se que os “Gringos” não são bobos por se deixarem enganar assim. Tudo não passa de estratégia mercadológica. Recorde-se o caso da Microsoft e o seu sistema operacional Windows ou seu produto Office (de editoração de texto), os mais copiados (pirateados) do mundo. Será que a Empresa se preocupou (talvez um pouquinho)? Afinal, quanto mais pessoas copiavam mais dependentes se tornavam. O serviço RDA Toolkit parece seguir a mesma lógica: estimular a familiaridade, e a dependência psicológica e técnica.

Até mesmo, copiar os arquivos da RDA pode ser trabalho inútil. O código não está completo, e atualizações são uma constante. Quando o serviço começar para valer a tranca será eficaz, e com dosagens de acesso planejadas.

O que fazer? Bem, podemos lançar um modelo de negócio. Fichar toda a RDA e por meio do correio impresso, por carta social (mais barata), circular as regras e exemplos de registros. Uma assinatura de dez reais com acesso a uma dezena de fichas normativas. Por $1 real cada ficha fotocopiada. Podemos pensar (analogicamente) em uma pirâmide catalográfica, como aquelas pirâmides financeiras. Como dei a ideia fico no topo da cadeia alimentar dos $$ (reais). Os demais vão se desdobrando para compor seus grupos de contribuintes catalogadores, a cada $10 reais que você receber, $1 real é meu. Posso ser um bibliotecário modesto, mas não sou catalogador burro. Nada de digital para não ser rastreado, como Megaupload.

Brincadeiras a parte, há um movimento nascente contra está estrutura de disseminação da RDA. Uma alternativa é a Cooperative Cataloging Rules Blog, lançada em 2009. Estruturada para a comunidade de catalogação, e destinada a permitir que as regras atuais sejam mantidas e atualizadas por catalogadores que optam por não adotar a RDA.

Em realidade, não se tem noticias mais atuais sobre a mobilização, mas uma explicação sobre a proposta alternativa é apresentada por James Weinheimer (Diretor de Biblioteca e Serviços de Informação da Universidade Americana de Roma, Itália).

Segundo Weinheimer, muitos na comunidade bibliotecária de catalogação têm reservas sobre implementar a RDA. Eles sentem que, além dos transtornos que irá causar no dia-a-dia dos catalogadores, a RDA não vai resolver os problemas enfrentados pela comunidade de catalogação. A questão tem sido discutida em vários lugares, incluindo a literatura técnica, listas de discussão, e entre bibliotecas. A questão se agrava, ainda, pelos problemas orçamentários que as bibliotecas norte-americanas enfrentam, e não são somente os custos de reorganização, reconversão, revisão da documentação local. Mas, além da assinatura on-line, fazer uso da RDA e desenvolver novas habilidades catalográficas, especialmente para um produto que não está completo.

As bibliotecas têm preocupações legítimas. O temor de que as regras antigas não serão mais mantidas e atualizadas, portanto, que em essência não há escolha a não ser adotar a RDA, porque se as bibliotecas não o fizerem, ficarão para sempre presas no ano de 2009 (ou 2013 ou outro, sempre que venha uma atualização da RDA).

Neste sentido, a iniciativa da Cooperative Cataloging Rules é ser um espaço para construir a interpretação das regras disponibilizadas em um ambiente wiki para pesquisa e desenvolvimento. Segundo o mentor, há um grupo internacional de especialistas em catalogação dispostos a se envolverem no esforço. Mas, há necessidade da participação de muitos mais especialistas em catalogação.

O próprio James Weinheimer comenta a sua hesitação em adentrar na mobilização, até mesmo pelo apreço aos seus colegas que trabalham diligentemente na criação da RDA. No entanto, ele observa que a sua biblioteca não está em condições de adotar a RDA e nem arcar com os custos (anteriormente citados) envolvidos que inevitavelmente surgem em um projeto de grande escala como este. Apesar de acreditar na importância da biblioteca tradicional adaptar sua catalogação, em resposta às mudanças da sociedade, e no intercâmbio de conhecimento. Levanta dúvidas se a RDA realmente fará isso: fornecer às bibliotecas ou para os usuários das bibliotecas o que eles querem e precisam.

Assim, alternativas devem ser encontradas. Tudo que os bibliotecários precisam fazer é manter seus exemplares atuais da AACR2r, complementados pelas LCRIs (Library of Congress Rule Interpretations), para poder continuar a desenvolverem-se em uma forma de cooperativa global.

Abre-se parênteses para destacar que as LCRIs foram substituídas pela Library of Congress Policy Statements, que estão disponíveis gratuitamente no www.loc.gov/aba/.

Retornando aos comentários de Weinheimer, a proposta da Cooperativa é dar às bibliotecas uma escolha real, mas, também, oferecer aos catalogadores um canal de voz sobre o futuro da sua profissão. Como nada disto foi tentado antes, não há como prever o seu desenvolvimento. É presumido algo semelhante ao desenvolvimento do sistema operacional Linux, aplicado aos padrões bibliográficos. Além da questão prática, é incluído no projeto aspectos do debate teóricos.

Assim, o segundo propósito da Cooperativa é estabelecer uma base conceitual comum com outras comunidades de metadados para que se possa começar a entender um ao outro. Isto é, a antecipação do momento na qual as diferentes comunidades compartilham seus metadados de forma coerente e/ou de forma que não se pode imaginar neste momento. O compartilhamento e a cooperação de informações não pode ser uma via de mão única. Enquanto outras comunidades precisam entender as bibliotecas, há a necessidade das bibliotecas entenderem outras comunidades e as suas necessidades.

Cita-se como exemplo, o registro editado em ONIX e o registro editado em AACR2 que podem ser bastante diferentes conceitualmente, gerando confusão entre todos os interessados. Acrescente a isso as variedades recém-surgidas de recursos digitais continuamente atualizados, com anotações compartilhadas. A própria ideia de edição torna-se de difícil definição. Para que se possa cooperar, é importante que entendamos uns aos outros. Nas ações preconizadas pelaCooperative Cataloging Rules, há um lugar para essa discussão.

Antes que todos possam começar a trabalhar juntos, é preciso haver um entendimento sobre o que os outros estão fazendo, e isso é especialmente importante para aqueles que trabalham no nível prático e cotidiano. Neste aspecto, a Cooperative Cataloging Rules tenta proporcionar um espaço para a partilha e troca de conceitos bibliográficos, com ênfase na "cooperação".

Não se sabe como todo o processo irá se desenvolver, ou se haverá algum interesse em tudo que é proposto. No entanto, se o esforço não for feito nunca se saberá de seu possível sucesso. Apesar de ser uma ação aberta à participação de interessados, no inicio a intenção é contar apenas com catalogadores profissionais, e criadores de metadados para coordenar as páginas eletrônicas e as suas alterações e comentários.

Projeto envolvendo metadados tornou-se uma preocupação tão importante na atualidade. Muitos projetos de padrões de metadados são desenvolvidos de forma aberta, e isto é inevitável. Sente-se que é importante para os bibliotecários catalogadores se envolverem o mais profundamente possível. Caso contrário, todos estes desenvolvimentos importantes que ocorrem terão lugar sem eles.

Weinheimer observa que o projeto só pode funcionar com a ajuda das pessoas. Lembra que o projeto não é seu, ele é apenas o iniciador. Convida a participação pelo site:http://sites.google.com/site/opencatalogingrules/.

A proposta apresentada é uma sugestão que pode ser copiada pela comunidade brasileira de bibliotecários. Sabe-se que, institucionalmente, muitas bibliotecas estão promovendo a capacitação de suas equipes na habilitação ao novo código, mas é ação individual, e questões de fundo não são discutidas sobre a catalogação brasileira.

Não temos redes cooperativas ou consórcios de abrangência nacional. As informações sobre os destinos do histórico Bibliodata não são claras. Mesmo o código em vigor no país – AACR2r, não teve nenhuma folha atualizada desde o seu lançamento, ao que parece foi abandonado precocemente. 

Muitas bibliotecas (de médio e pequeno porte) estão alijadas deste acesso e de melhores reflexões sobre práticas adotadas. E a própria comunidade bibliotecária sequer se preocupou em instituir algum comitê, ou comissão, ou grupo de catalogadores para pensar um esboço de política de catalogação bibliográfica nacional.

Enfim, em terras tupiniquins vamos vendo a banda passar. Um evento aqui, outro acolá, mas de consistência ainda nada.

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